Importante discussão versa sobre a ordem tributária e o interesse arrecadatório do Estado versus a preservação da atividade econômica.
Em primeiro lugar, embora a discussão possa ser estendida para além da esfera administrativa, recaindo ao âmbito judicial, é certo que o Fisco, após a decisão definitiva desfavorável, adota, em regra, as seguintes medidas: (a) encaminha a representação fiscal para fins penais para o Ministério Público, se entender pela existência de indícios da ocorrência de crime tributário; (b) inscreve o crédito tributário em dívida ativa, para que seja ajuizada Execução Fiscal.
Com isso, a investigação criminal, não raro, é instaurada e tramita simultaneamente com a execução fiscal.
Ora, se a intenção da criminalização dos comportamentos contrários a ordem tributária é assegurar a arrecadação visando a efetivação dos direitos fundamentais dos cidadãos, mediante o custeio de serviços essenciais, também é verdade que o Estado não pode agir de maneira irracional.
Todavia, na prática, o que se verifica é a banalização da criminalização, sendo ela usada de maneira a responsabilizar, excessiva e indiscriminadamente, inúmeros atos de agentes econômicos, o que acaba por desestimular os investimentos produtivos e, em última instância, minar a própria atividade econômica.
De acordo com os dados do Plano Anual da Fiscalização da Receita Federal do Brasil, as autoridades realizaram 4.859 representações fiscais para fins penais no ano de 2014; 2.782 no ano de 2015; 2.437 no ano de 2016; 2.877 no ano de 2017; 2.442 no ano de 2018 e 2.963 no ano de 2019.
A isso se conjuga que o Decreto nº 982 de 1993 impõe sanção administrativa aos Auditores-fiscais do Tesouro Nacional que não procederem com a representação fiscal para fins penais ao apurarem ilícito de sonegação fiscal e crime contra a ordem tributária. Isso implica que os agentes públicos, sob a alegação de cumprirem seu dever legal, realizam de forma cada vez mais frequente as representações criminais desde a lavratura do Auto de Infração.
Conforme dados do Ministério Público Federal, mais de 80% das denúncias oferecidas envolvendo crimes contra a ordem tributária tem sido aceita pelos juízes: 80,46% no 2º semestre de 2015, 79,64% no 1º semestre de 2016, 80,54% no 2º semestre de 2016 e 80,79% no 1º semestre de 2017.
Ainda, há de se considerar importante dado que revela que o Fisco, em quase 30% dos processos tributários, entendeu que os acionistas, diretores ou administradores teriam praticados crimes contra a ordem tributária. Isso significa que em 30% dos casos as empresas, na pessoa dos seus representantes, agiram de forma ilícita com intenção dolosa de praticar a fraude.
Pontua-se que o Brasil atravessa um período em que o ilícito e a corrupção estão sendo, ainda que gradativamente, combatidos. A sociedade, ao mesmo tempo, é constantemente informada, através do noticiário, sobre os escândalos que afetam os aspectos essenciais de nossa vida. Assim, a legislação é vista como o instrumento competente e apto a sanar as irregularidades praticadas, fazendo com que os agentes sejam penalizados.
Mas é certo afirmar, através desses dados, que em todos os casos em que as Autoridades Fiscais identificam elementos que evidenciam a prática criminosa contra a ordem tributária e que são levados à análise do Poder Judiciário de fato envolvem ilícitos penais?
O que nos parece é que os agentes econômicos enfrentam contra si uma criminalização excessiva. Tratando-se, por exemplo, de casos de conflito na interpretação da legislação tributária ou mesmo de inadimplência, inegável a ausência de dolo de fraude no comportamento do contribuinte, o que, por si só, deveria afastar a incidência do crime tributário.
E é justamente nesse ponto que se trava o embate entre o interesse arrecadatório e a preservação da atividade econômica.
O Fisco não deveria, indiscriminadamente, apresentar representações fiscais para fins penais e o Poder Judiciário precisa adotar uma análise crítica a respeito das singularidades de cada caso. Ao contrário, o Fisco deve ter em mente que o artigo 170, da Constituição Federal, estabelece proteção à ordem econômica, sendo certo que a livre iniciativa é uns princípios basilares da República Federativa do Brasil.
Isso significa que as Autoridades Fiscais têm o dever de aplicar corretamente as regras tributárias e, com maior cautela, indicar eventual prática de crime contra a ordem tributária, informando, para tanto, as provas que o levaram a tal conclusão, sob pena de prejudicar de forma irreparável a iniciativa privada, desestimulando a construção de valor pelo empresariado estrangeiro e nacional.
Ora, o verdadeiro interesse público é proteger a iniciativa privada que, afinal, se dedica a investir, gerar riqueza no país e pagar impostos. Deve-se puni-la somente quando presentes, de fato, condutas que sejam verdadeiramente caracterizadas como práticas criminosas e que, portanto, mereçam a devida penalização.
Dessa maneira, caso se continue realizando essa criminalização cega, consequência outra não há senão o próprio desestímulo à atividade produtiva, o que acarretará redução não apenas do produto e da riqueza, mas sim, e principalmente, da própria arrecadação.
O ideal é proteger o interesse público, garantindo um nível razoável de cumprimento da legislação tributária e a arrecadação ao erário mediante a criminalização, mas sem ameaçar a continuidade das empresas. Tudo sem falar na conhecida insegurança jurídica decorrente da caótica legislação tributária.
Dr. Salvador Scarpelli Neto